Para hoje
Quando a visão se dissolveu em sombras, ele percebeu que não caminhava mais pelas ruas, mas por corredores de símbolos. Cada lembrança tornava-se um manuscrito medieval, iluminado por significados ocultos, e cada gesto era uma chave que abria portas para labirintos invisíveis. O mundo, antes feito de formas e cores, agora se revelava como uma trama de signos, onde o passado e o presente se entrelaçavam em enigmas que pediam interpretação. Não havia derrota: havia apenas a descoberta de que a história que o cercava era também a história que ele poderia escrever de si mesmo, como se fosse ao mesmo tempo cronista e protagonista.
Mas logo percebeu que narrar não era um ato solitário. As palavras que surgiam em sua boca ou em sua mente não lhe pertenciam inteiramente: vinham de outros tempos, de outras bocas, de outros mundos. O que chamava de “sua história” era, na verdade, uma tessitura de vozes que o precediam e o excediam. Se a cegueira lhe dera protagonismo, a linguagem lhe devolvia a dúvida: quem fala quando escrevemos? O homem ou o texto? Assim, sua busca não era apenas narrar-se, mas descobrir se havia, de fato, um “eu” por trás das páginas, ou se era apenas o lugar onde os signos se encontravam para dançar.
Foi então que compreendeu que a identidade não era um retrato imóvel, mas uma narrativa em curso. Não se tratava de recuperar um “eu” perdido, mas de compor uma trama onde passado e futuro se entrelaçavam em promessa. Cada lembrança era um fragmento que só ganhava sentido quando colocado ao lado de outros, como capítulos de um livro que nunca se fecha. Tornar-se protagonista significava aceitar que o “quem sou” só existe na história que se conta, e que essa história é sempre provisória, aberta, em constante reescrita.
E você, que lê estas linhas, já se perguntou se não carrega também uma cegueira própria? Não aquela dos olhos, mas a que se instala quando deixamos que outros escrevam nossa história em nosso lugar. O que há em sua memória que ainda não virou palavra? Que gesto simples, esquecido, poderia ser o início de uma narrativa que lhe devolva protagonismo? Talvez o silêncio que você guarda seja apenas o prelúdio de um livro que espera ser escrito — e a pergunta que fica é: terá coragem de começar?
Comentários