A memória de hoje: Quarto na adolescência- A Cama do Meio e o Terço na Cabeceira
Entre irmãos, O quarto era trincheira, confessionário, risadas, conversas e proteção.
Você se lembra do seu quarto de adolescente? Aquele cantinho do mundo que era, ao mesmo tempo, refúgio e palco das nossas primeiras grandes descobertas e angústias. O meu tinha uma geografia particular. Não era só meu, veja bem. Era um território dividido, um pequeno reino partilhado com mais dois irmãos. Eram três camas num espaço que a memória insiste em alargar, mas que a razão sabe que era modesto.
A minha cama ficava no meio. Um lugar curioso, esse. Nem na segurança da parede, nem na liberdade da ponta. Ali, no centro daquele pequeno universo, eu era o irmão mais velho, o ponto de equilíbrio (ou desequilíbrio, às vezes) entre os mundos que começavam a despertar nos meus irmãos mais novos. À noite, o silêncio nunca era completo. Havia o respirar compassado de um lado, o virar na cama do outro, os murmúrios de sonhos que eu tentava decifrar no escuro.
E na cabeceira da minha cama do meio, morava um guardião silencioso: um terço simples, de contas gastas pelo toque e pelo tempo. Não me lembro como ele foi parar ali, se foi presente de avó ou herança de alguma primeira comunhão distante. Mas sei que, para mim, ele era mais que um objeto de fé. Era uma promessa de proteção. Naquelas noites povoadas pelos medos infantis que a adolescência ainda não tinha dissipado por completo, eu olhava para ele, pendurado ali, banhado pela nesga de luz que entrava pela janela, e sentia uma calma inexplicável. Acreditava, com a força ingênua e poderosa dessa idade, que aquelas contas me guardavam, que velavam meu sono e afastavam qualquer sombra que ousasse se aproximar.
Aquele quarto era um microcosmo da vida. Tinha cheiro de caderno novo no início do ano, de tênis esquecido no canto, do perfume barato que a gente usava para ir às primeiras festinhas. Tinha pôsteres de bandas que hoje soam como trilha sonora de um tempo doce e irrepetível. Tinha as marcas na parede de alguma disputa por espaço, os segredos confessados em voz baixa depois que as luzes se apagavam, as risadas abafadas para não acordar os pais.
Ser o irmão mais velho naquele cenário era ter um pouco de plateia e um pouco de farol. Era sentir o peso da referência, mesmo sem querer. Era ouvir os desabafos, apartar as brigas miúdas, partilhar as descobertas – das músicas aos primeiros dilemas do coração. E a cama do meio, com seu terço vigilante, era meu posto de observação, meu centro de comando afetivo.
Hoje, aquele quarto existe apenas na memória, tingido pelas cores suaves da nostalgia. As camas se foram, os irmãos cresceram, cada um seguiu para o seu próprio universo. Mas a sensação daquele refúgio compartilhado, daquela cumplicidade tecida no escuro, permanece. E o terço? Guardo-o ainda, não mais na cabeceira, mas numa gaveta de coisas queridas. Passo minhas mãos sobre ele e sorrio, pensando que, talvez, de alguma forma misteriosa e poética, ele continue a me proteger, guardando as lembranças daquele menino que dormia no meio, sob o olhar silencioso das suas contas.
E você, qual a memória afetiva do seu quarto de lembranças? Que guardiões silenciosos protegiam seus sonhos de adolescente? São essas as relíquias que nos formam, os tijolos invisíveis da nossa resiliência.
📖 Hismere é isso, a força da memória, o poder da memória e a potência da resiliência! ✍️😎🧑🦯
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